O que acontece quando o jogo vira prisão?
Já se pegou apostando mais tempo do que planejou? Ou aumentando valores para recuperar perdas?
Talvez você conheça alguém assim. As apostas online começam como diversão. E terminam como pesadelo.
A tela do celular vira uma armadilha. Os aplicativos de apostas estão sempre ali. Disponíveis 24 horas por dia. Sem pausa.
Vamos falar sobre isso. Sem filtros.
Como psicólogo clínico, vejo casos aumentando. Homens jovens chegam ao consultório desesperados. Dívidas enormes. Famílias destruídas.
A compulsão por apostas online é real. E devastadora.
“O jogo patológico é caracterizado por comportamento de jogo persistente e recorrente, que causa prejuízo significativo nas esferas pessoal, familiar, social, educacional e profissional” (OLIVEIRA, 2020).
Aqui está um guia completo. Para você entender, identificar e buscar ajuda.
Por que ficamos viciados em apostas online?
A Clínica Vida Sóbria diz que o cérebro adora recompensas. Cada aposta libera dopamina. Mesmo quando perdemos.
É como drogar o cérebro. A expectativa da vitória já causa prazer.
Os apps são projetados para isso. Cores vibrantes. Sons de moedas caindo. Notificações constantes.
Tive um paciente de 22 anos. Pedro gastou a poupança inteira em um mês. Começou com apostas de R$5. Terminou apostando R$1.000 por jogo.
“Eu não conseguia parar de olhar o celular”, me disse.
As empresas de apostas conhecem bem o cérebro humano. Melhor que nós mesmos.
Por isso criam:
- Bônus de boas-vindas que parecem generosos
- Apostas grátis que te fazem voltar
- Odds turbinadas em momentos estratégicos
- Contas VIP que fazem você se sentir especial
Um ex-viciado me contou uma vez: “É como ter um cassino no bolso. Quem resiste?”
Poucos resistem. Muitos caem.
Como saber se você está com compulsão por apostas
Os sinais aparecem aos poucos. Raramente de uma vez.
Você já mentiu sobre quanto gastou em apostas? Esse é o primeiro sinal.
Outros sinais comuns:
Apostar valores maiores para sentir emoção. Tentar recuperar perdas com novas apostas. Pedir dinheiro emprestado para jogar.
Falta de concentração no trabalho. Pensamentos constantes sobre apostas. Irritabilidade quando não está jogando.
Ana, uma paciente de 34 anos, escondia do marido. Apostava no banheiro, de madrugada. Gastou R$30 mil em três meses.
“Era como se eu vivesse duas vidas”, relatou em terapia.
Outro sinal: você já tentou parar e não conseguiu?
Se respondeu sim a duas ou mais perguntas, fique alerta. Procure ajuda profissional.
O caminho da dependência: Fases da compulsão
A compulsão se desenvolve em fases. Conheço bem esse caminho.
Fase da vitória
Tudo começa com uma vitória. Às vezes grande, às vezes pequena.
Você ganha e pensa: “Isso é fácil!”
O cérebro registra: prazer + dinheiro = apostar mais.
Carlos, engenheiro, ganhou R$2.000 na primeira semana. “Foi como mágica”, contou. Seis meses depois, tinha perdido R$70 mil.
Fase da perseguição
Após algumas perdas, a mente muda. Você passa a perseguir o dinheiro perdido.
“Só mais uma aposta para recuperar.”
É a fase mais perigosa. Os valores aumentam. A frequência também.
Um paciente descreveu: “Era como correr atrás de um trem em movimento.”
Fase do desespero
Dívidas crescem. Mentiras se acumulam. Relacionamentos sofrem.
Você joga não mais pelo prazer. Mas para fugir dos problemas que o jogo criou.
É um ciclo cruel. Quanto mais você joga, mais problemas tem. Quanto mais problemas, mais você joga.
“O comportamento de jogo do indivíduo geralmente aumenta em períodos de estresse ou depressão, criando um ciclo de fuga e agravamento dos problemas existentes” (TAVARES, 2018).
Impactos da compulsão por apostas na vida real
As consequências vão além do dinheiro perdido.
Saúde mental
Ansiedade constante. Depressão. Pensamentos suicidas.
João, 28 anos, desenvolveu síndrome do pânico. Ataques aconteciam sempre que via seu saldo bancário.
Insônia também é comum. O cérebro não desliga.
Relacionamentos
Mentiras destroem confiança. Dívidas afetam a família inteira.
Mariana perdeu a guarda dos filhos. O ex-marido provou que ela gastava o dinheiro da pensão em apostas.
Amizades acabam. Isolamento aumenta.
Financeiro
Dívidas crescem em ritmo assustador. Juros sobre juros.
Já atendi pacientes que:
- Perderam casas
- Venderam carros por valores irrisórios
- Fizeram empréstimos com agiotas
- Usaram dinheiro da empresa
A recuperação financeira leva anos. Às vezes, décadas.
Como sair do ciclo: Tratamento e recuperação
Existe saída. Não é fácil. Mas é possível.
Primeiro passo: Reconhecer o problema
Sem reconhecimento, não há tratamento.
Diga em voz alta: “Eu tenho um problema com apostas.”
Parece simples. Não é.
Buscar ajuda especializada
- Psicoterapia cognitivo-comportamental
- Grupos de apoio como Jogadores Anônimos
- Tratamento psiquiátrico quando necessário
A terapia cognitiva funciona bem. Ajuda a identificar pensamentos distorcidos.
“Vou ganhar desta vez” ou “Estou quase recuperando” são exemplos desses pensamentos.
Controle financeiro
Entregue suas finanças a alguém de confiança. Temporariamente.
Cancele cartões de crédito. Bloqueie sites e apps de apostas.
Ricardo, após seis meses sem apostar, ainda pedia à esposa para controlar seu dinheiro.
“É como ser alcoólatra. Nunca estamos totalmente curados.”
Reconstruir relações
A confiança volta aos poucos. Com ações, não promessas.
Grupos familiares ajudam. Tanto o dependente quanto a família precisam de apoio.
Prevenção: Como proteger quem você ama
Converse sobre apostas. Abertamente. Sem tabus.
Ensine sobre probabilidades reais. As casas sempre ganham. É matemática.
Monitore jovens. Adolescentes são especialmente vulneráveis.
Busque ajuda aos primeiros sinais. Não espere a crise.
O que fazer agora?
Se você se identificou com este texto, respire fundo. Você não está sozinho.
Milhares de pessoas passam por isso. Muitas se recuperam.
Ligue para o CVV (188) se estiver em crise. É gratuito e confidencial.
Procure um grupo de Jogadores Anônimos na sua cidade. Ou participe de reuniões online.
Marque uma consulta com um psicólogo especializado em dependências comportamentais.
O primeiro passo é o mais difícil. E você já deu: buscar informação.
Agora é seguir em frente. Um dia de cada vez.
Lembro do que Paulo, meu paciente há três anos livre de apostas, me disse: “A vida real tem emoções muito melhores que qualquer aposta.”
Ele está certo. E você pode descobrir isso também.
Referências
TAVARES, H. Dependência de jogos de azar: fatores de risco e tratamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/38kVN5gQbhRnRcb6Ry6yn9r/