O loló entrou na minha vida profissional logo nos primeiros anos de atendimento. Não como usuário, claro. Como psicólogo especialista em dependência química.
Vi jovens chegarem ao consultório após anos de uso. O dano já estava feito. Cérebros alterados. Vidas transformadas.
O que é esse produto tão comum em festas? Como ele age no organismo? Quais são seus riscos reais?
Vamos falar sem rodeios sobre essa substância perigosa. Sem julgamentos. Apenas fatos.
O que é o loló?
O loló é um solvente inalante. Uma mistura líquida de substâncias químicas industriais.
Clorofórmio e éter estão entre seus principais componentes. Também leva acetona e outras substâncias tóxicas.
Vem em pequenos frascos. Geralmente em vidros escuros. Às vezes em recipientes plásticos.
O cheiro é forte. Adocicado. Inconfundível para quem já sentiu uma vez.
“Os solventes inalantes como o loló são substâncias voláteis que produzem vapores químicos capazes de induzir efeitos psicoativos quando inalados, causando danos neurológicos graves e potencialmente irreversíveis” (CARLINI, 2020).
É conhecido por outros nomes. Cheirinho. Lança-perfume. Aranha. A variedade de apelidos muda conforme a região.
O preço é baixo. O acesso é fácil. A fiscalização, quase inexistente.
Como o loló age no cérebro
O efeito começa nos pulmões. O vapor é inalado. Passa para a corrente sanguínea em segundos.
Chega ao cérebro rapidamente. Atravessa a barreira hematoencefálica sem dificuldade.
Afeta vários neurotransmissores ao mesmo tempo. Principalmente o GABA, responsável pela inibição neural.
Segundo especialistas da Clínica Vida Sóbria, a sensação é de embriaguez imediata. Mais intensa que o álcool. Mais rápida também.
O cérebro fica “entorpecido”. As conexões neurais, temporariamente alteradas.
No consultório, Pedro me contou sua experiência: “É como se meu cérebro flutuasse para fora do corpo por alguns minutos.”
Essa descrição faz sentido. O loló causa dissociação. Uma separação entre consciência e sensações corporais.
O problema? Essa “flutuação” tem um preço alto.
Efeitos imediatos do loló
Os efeitos começam em segundos. Duram poucos minutos. São intensos.
A pessoa sente euforia. Desinibição. Tontura agradável. Uma sensação de flutuar.
O coração acelera. A pupila dilata. A coordenação motora fica prejudicada.
A fala fica arrastada. Os movimentos, desajeitados. O equilíbrio, comprometido.
Atendi uma jovem que descrevia assim: “Tudo fica em câmera lenta. Os sons parecem distantes. Como se eu estivesse dentro de uma bolha.”
Alucinações podem acontecer. Principalmente visuais. Cores mais vivas. Imagens distorcidas.
A percepção do tempo muda. Segundos parecem minutos. O mundo ao redor parece irreal.
E depois vem a “descida”. Rápida. Às vezes com náusea. Dor de cabeça. Confusão mental.
O ciclo convida à repetição. Usar mais. Manter a sensação. É aí que o perigo aumenta.
Riscos imediatos à saúde
O perigo começa na primeira inalação. Não é exagero.
A morte súbita por arritmia cardíaca é possível. Mesmo em pessoas jovens e saudáveis.
Vi casos na emergência quando trabalhei em hospital. Jovens com 18, 19 anos. Corações que simplesmente pararam.
A chamada “Síndrome da Morte Súbita por Inalantes” existe. É documentada na medicina.
Paulo, cardiologista com quem trabalhei, explicava: “O coração fica sensibilizado à adrenalina. Qualquer susto pode desencadear arritmia fatal.”
Há também o risco de sufocamento. A pessoa pode perder a consciência com o saco plástico ou pano na boca.
Acidentes são comuns. Quedas. Cortes. Fraturas. A coordenação motora fica severamente prejudicada.
E tem mais: convulsões. Especialmente em pessoas predispostas. O loló diminui o limiar convulsivo.
“Os solventes voláteis como o loló podem causar arritmias cardíacas fatais pelo mecanismo de sensibilização miocárdica às catecolaminas, mesmo em usuários de primeira vez, fenômeno conhecido como ‘sudden sniffing death syndrome'” (MESQUITA, 2018).
Danos à saúde a longo prazo
O uso contínuo causa danos permanentes. Literalmente derrete o cérebro.
Não é figura de linguagem. O loló dissolve a mielina dos neurônios. É como tirar o isolamento de fios elétricos.
O resultado? Conexões cerebrais danificadas. De forma irreversível.
Durante uma ressonância, mostrei a um paciente seu próprio cérebro. As áreas brancas, diminuídas. “É como se tivesse buracos”, ele disse chocado.
Os sintomas aparecem gradualmente. Dificuldade de concentração. Perda de memória recente. Mudanças de personalidade.
O fígado também sofre. O rim. O coração. Os pulmões. Nenhum órgão escapa.
Atendi Lucas por três anos. Começou com loló aos 14. Aos 21, tinha a capacidade cognitiva de um idoso com demência inicial.
A abstração, prejudicada. O raciocínio lógico, comprometido. A memória, cheia de falhas.
E o pior: sem volta. O dano neurológico é permanente.
Sinais de uso e dependência
Reconhecer o uso é o primeiro passo para ajudar. Os sinais existem.
O cheiro característico nas roupas e cabelo. Difícil de esconder. Persiste por horas.
Manchas e ressecamento ao redor do nariz e boca. A pele fica irritada pelo contato.
Olhos vermelhos. Pupilas dilatadas. Fala arrastada sem cheiro de álcool.
Uma mãe me procurou preocupada: “Encontrei paninhos escondidos. Frasquinhos vazios. Pensei que fosse remédio para dor.”
A negação é forte em quem usa. Minimizam os riscos. Negam a frequência de uso.
Os sinais de dependência são claros:
- Tolerância: precisar de mais para o mesmo efeito
- Abstinência: irritabilidade e fissura quando fica sem usar
- Descontrole: usar mais que o planejado
- Tentativas frustradas de parar
A vida começa a girar em torno da substância. Outros interesses desaparecem. É o padrão da adição.
Quem está mais vulnerável?
Adolescentes são as principais vítimas. A curiosidade. A pressão social. A sensação de invencibilidade.
O cérebro adolescente ainda em desenvolvimento sofre danos ainda maiores. As áreas pré-frontais, responsáveis pelo controle de impulsos, são as mais afetadas.
Pessoas em situação de rua usam como fuga. Da fome. Do frio. Da realidade dura.
Vi isso de perto no trabalho voluntário. O loló como anestésico para a dor de existir.
Frequentadores de festas buscam o efeito rápido. A euforia instantânea. Sem perceber o perigo.
Também existe o fator genético. Algumas pessoas têm predisposição biológica à dependência química.
Carlos me contou: “Na primeira vez, senti algo tão bom que não consegui parar. Foi como se meu cérebro tivesse encontrado o que sempre procurou.”
Essa vulnerabilidade não é falha de caráter. É biologia. Neurociência. Genética.
Como ajudar quem usa loló
A abordagem precisa ser sem julgamentos. A pessoa já carrega culpa suficiente.
Conversar com calma. Em momento adequado. Não durante intoxicação.
Apresentar fatos. Informações científicas. Não apelos emocionais exagerados.
Oferecer ajuda profissional. Psicólogo. Psiquiatra. Grupos de apoio.
A terapia cognitivo-comportamental funciona bem. Trabalha gatilhos. Comportamentos. Pensamentos distorcidos.
Na minha prática clínica, uso muito o modelo de Prevenção de Recaída. Identificamos situações de risco. Criamos estratégias de enfrentamento.
Medicações podem ajudar. Não existe remédio específico para dependência de inalantes. Mas podemos tratar ansiedade e depressão associadas.
Grupos como Narcóticos Anônimos oferecem apoio contínuo. A força da identificação. O exemplo vivo de recuperação.
O caminho é longo. Exige paciência. Recaídas fazem parte do processo. Não significam fracasso.
Prevenção: o melhor caminho
Informação clara é fundamental. Sem exageros. Sem mentiras. Adolescentes detectam alarmismo falso.
Conversar abertamente sobre drogas. Desde cedo. Com linguagem adequada à idade.
Fortalecer fatores de proteção. Autoestima. Projetos de vida. Habilidades sociais.
Monitorar comportamentos. Conhecer os amigos. Saber onde e com quem estão.
Dar exemplo. Os pais que abusam de álcool ou outras substâncias abrem portas para os filhos.
Atender sinais de sofrimento emocional. Muitos buscam nas drogas alívio para angústias não tratadas.
Na escola onde dou palestras, a diretora relata: “Desde que começamos a falar abertamente, os casos diminuíram. O silêncio só alimenta o problema.”
E mais importante: criar canais de diálogo. Sem julgamento. Sem punição antecipada.
Conclusão
O loló é uma droga perigosa. Os danos são reais. Alguns, irreversíveis.
O baixo custo e o efeito rápido tornam o loló atraente. Mas o preço biológico é alto demais.
Vi cérebros danificados em exames. Vi vidas interrompidas em pronto-socorros. Vi famílias destruídas em terapias.
Se você usa, busque ajuda. Se conhece alguém que usa, ofereça apoio sem julgamento.
A recuperação é possível. Difícil, mas possível. Cada cérebro tem capacidade de criar novos caminhos.
O primeiro passo é reconhecer o problema. O segundo, buscar ajuda qualificada.
Sua vida vale mais que alguns minutos de euforia química. Seu cérebro merece proteção. Seu futuro pede chances reais.
Referências
CARLINI, E. A. Drogas Psicotrópicas: Conceitos e evolução histórica. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 47, n. 2, p. 45-58, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/kG6nYdGDZ3W4dcqFG8dfGdv/?format=pdf&lang=pt
MESQUITA, F. Danos neurológicos associados ao uso de solventes voláteis. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 67, n. 3, p. 149-156, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/anp/i/2009.v67n3a/